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Crítica

Sense8 - 2ª Temporada | Crítica

Segunda temporada investe na ficção científica, mas perde valor emocional nesse processo

06.05.2017, às 19H04.
Atualizada em 08.05.2017, ÀS 18H01

Toda dramaturgia tem seu próprio processo de amadurecimento. Os autores colocam os personagens em situações de limite emocional e, pela coerência com a realidade, eles crescem (ou não) e a história precisa seguir esse ritmo. Porém, apesar desse amadurecimento criativo ser importante, a obra não pode esquecer porque foi criada e confundir esse amadurecimento com uma perdade de unidade. Ou seja, a atração não pode deixar de lado o conjunto de coisas que montam aquele universo e que correspondem a ele nos campos do espaço, tempo, estilo, estética, etc. Por exemplo, se um drama familiar tem uma feiticeira realizando um encantamento, ele sai da sua unidade criativa. 

Sense8, criação de Lilly e Lana Wachowski e de Michael Straczynski, chegou à Netflix com uma recepção bastante positiva. Embora os primeiros episódios fossem um pouco mais lentos e a trama demorasse para se organizar, a série tinha uma qualidade técnica atrativa e personagens com dramas humanos bastante reais e identificáveis. A história das oito pessoas ao redor do mundo que se conectavam até o ponto de literalmente se colocarem no lugar do outro, tinha uma metáfora inteligente sobre  empatia e espalhava uma catarse de envolvimento emocional muito eficiente. A história teve paciência na hora de apresentar seus personagens, situá-los nas vidas dos outros e sua mensagem de aceitação logo se tornou um exemplo para todos os que compartilham da importância da tolerância social, sexual e religiosa.

Os fãs do seriado sempre souberam que havia um mistério envolvendo os sensates. Os roteiristas incutiram essa ideia na primeira sequência do primeiro episódio e depois ela foi sendo colocada de lado para que as vidas dos protagonistas pudesse ser desenvolvida. O resultado disso foi uma primeira temporada que valorizou o material humano da trama. Os fãs torciam pelos personagens, se empolgavam quando um tomava o lugar do outro numa situação de perigo, assistiam maravilhados as orgias e encontros coletivos sensoriais. Numa série chamada Sense8, fazia todo sentido que o foco principal fossem as questões sensitivas. E os autores foram muito competentes em estabelecer essa dinâmica, em fazer com o que o público sentisse a série.

Making Sense

Contudo, para os devoradores de mistérios, a série pecava em conduzir o seu. Após um pequeno investimento no season finale do primeiro ano, a série retornou disposta a “dar uma liga” ao seu lado de ficção científica e equilibrar melhor as questões emocionais com as questões práticas. A temporada então, foi planejada para começar com um longo especial de natal exibido em dezembro e com os novos episódios liberados no começo de maio. Quando colocamos em perspectiva o teor do especial com o começo dessa segunda temporada, percebemos que embora a promessa do maior investimento nos aspectos científicos tenha sido cumprida, a promessa do equilíbrio precisa de mais manutenção. Aflita em desenvolver seu mistério, Sense8 acabou entregando uma temporada mal organizada, que por muito pouco não caiu na completa quebra de unidade.

A exibição do especial de natal foi puro emocional. Os criadores foram até mesmo acusados de terem produzido um episódio que era puro fan-service, com direito até a esperada orgia. E justamente por terem pensado nos fãs que cativaram, os criadores foram certeiros ao não abordarem o “mistério”, deixando que o público pudesse se deliciar com as viradas afetivas dos seus personagens. Se exibido logo em seguida, o primeiro episódio (ou segundo se você seguir a organização da Netflix), demonstra uma forte discrepância de investimento criativo. A primeira metade dessa segunda temporada se concentrou completamente em estabelecer as descobertas dos sensates a respeito da organização secreta que os persegue, incluindo muitos diálogos sobre descobertas biológicas, detalhes genéticos, a origem dessa organização e muitos, muitos flashes que informam ao público a derradeira verdade sobre as capacidades sensitivas dos protagonistas. Enfim, não há mais mistério.

No Sense

Livre disso, a história se concentra na ação e tudo passa a ser um jogo de gato e rato em que os sensates querem pegar o “vilão” do jogo e ele quer pegar os sensates. Há cenas longuíssimas em que explicações sobre passado e presente são dadas com diálogos picotados e embora haja grande esforço em estabelecer a importância desses detalhes, Sense8 não tem uma ficção científica original para contar e tudo vira a velha trama de “organização secreta” persegue “pessoas especiais”. Não há um cuidado em fugir das obviedades clássicas desse gênero e aos poucos, lobotomias, “pílulas bloqueadoras” e coisas do tipo vão reformulando os códigos criativos da série, com direito a mais sensates surgindo para aumentarem a rede de deux ex machinas que já facilitavam muito as coisas para os roteiristas.

Na segunda metade da temporada, as Wachowskis já estabeleceram a resolução de seu mistério e então o desequilíbrio de narrativas fica mais evidente. Alguns dos personagens passam quase toda a temporada em função do mistério e outros não. As narrativas mais interessantes acabam sendo a de Lito (Miguel Ángel Silvestre), que corre quase toda por fora da trama central (com direito a um emocionante discurso na parada gay de São Paulo) e a de Nomi (Jamie Clayton), a única personagem que consegue unir perfeitamente seu envolvimento com o mistério e com a própria vida pessoal. Não por coincidência, esses dois personagens são ligados às causas LGBT. Capheus (Toby Onwumere) e Sun (Doona Bae) também tem jornadas paralelas com a trama de ficção científicamas enquanto ele some como mero coadjuvante, ela ganha metade da finale, com direito a perseguições e explosões que fazem do show quase um blockbuster de Michael Bay.

O saldo é controverso, estranho. A série luta por uma posição de híbrida, mas sofre para fazer suas revelações serem interessantes de verdade. A cada momento em que volta a investir no material humano, ela cresce, para logo depois voltar ao enfadonho palavreado científico cheio de chavões de efeito. Sense8 sempre foi uma série de catarse, mas seu texto nunca foi dos mais elegantes. Com essa discrepância de intenções narrativas, os clichês textuais ficam mais evidentes e os autores nem mesmo se preocupam em analisar se colocar num personagem a frase “rótulos são o oposto do entendimento”, é coerente com a natureza da série, que luta pela tolerância aos rótulos, seja eles quais forem (afinal de contas a transição de gênero se faz necessária em alguns para que haja adequação de signos pessoais e embora a palavra “rótulo” seja tão demonizada”, ela é somente um outro nome para “símbolo”). Cis, trans, gays, lésbicas, conformistas e não-conformistas... Todas essas nomenclaturas são “rótulos”, “símbolos” e eles precisam ser respeitados (o respeito a eles é devidamente cobrado, inclusive). Compreendê-los é parte do caminho para isso.

Sense8 tem muitos aspectos positivos e sua existência é preciosa e comovente sobretudo para as causas das minorias. Mas, seu segundo ano tropeçou na estrutura dramatúrgica apenas porque se sentiu obrigado a “dar explicações”. O que ficou foi a sensação cada vez maior de que o importante nunca foi saber “porquê” e sim apreciar as belezas que eram provenientes do “como”. 

Nota do Crítico
Bom

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