Filmes

Entrevista

"A falha trágica brasileira é a escravidão", diz Daniela Thomas, diretora de Vazante

O filme brasileiro mais polêmico do ano tem sessões na Mostra a partir desta quarta

24.10.2017, às 23H03.

Filme nacional mais polêmico do momento, por conta da repercussão das discussões sobre representação racial quando o filme passou pelo Festival de Brasília, Vazante chega ao circuito em 9 de novembro, mas antes disso o primeiro longa-metragem solo da diretora Daniela Thomas (parceira de Walter Salles em Linha de Passe e Terra Estrangeira) tem sessões na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo a partir desta quarta.

A produção acompanha os conflitos afetivos do português António (Adriano Carvalho), um senhor de terras na Minas Gerais de 1821, cuja mulher morreu no parto. Ele se casa de novo com uma menina muito jovem, Beatriz (Luana Nastas), e sai em viagem em suas expedições comerciais deixando a garota sob os cuidados de seus escravos. O debate em torno do filme se espalhou na mídia em função do questionamento de atrizes, atores, ensaístas e críticos a respeito da abordagem tradicional da senzala feita pelo cinema brasileiro. Ela falou ao Omelete sobre seu longa.

Existe uma representação de exclusão e de opressão em Vazante, e existe uma tragédia afetiva, que traduz de certa forma a história da intimidade no Brasil colonial. Como você avalia essa intimidade?

Daniela Thomas: Vazante é uma hipótese, que eu vim tramando ao longo de muitos anos, sobre a condição fundadora de nós brasileiros. Uma confluência de situações opressivas, desenraizamentos, diásporas e a escravidão que perpassa tudo. Mas no centro dele está uma dúvida que movimenta a História. Poderia existir ou resisitir algo como o espírito, que ousasse se sobrepor a essa malha maldita, imobilizante? Essa hipótese se materializou numa singela relação de amor construida pela afinidade natural, para além de todos os determinantes de poder, cor, condição. Nas longas conversas com a historiadora Mari del Priore, pudemos levantar uma infinidade de detalhes sobre a intimidade num lugar como aquele e naquele momento. Coisas saborosíssimas, como o beliscão que o marido dá na menina esposa, como gesto carregado de erotismo. A ausência do beijo, ou de gestos de afeto tais como os identificamos hoje. O convívio dos bebês negros criados soltos dentro da casa grande, junto às matronas. A impossibilidade de a mulher sentar-se à mesa junto a um convidado, por exemplo. As hierarquias e outras distinções de poder dentro da senzala. Enfim, dezenas de informações sobre a vida privada desse tempo que foram sendo tecidas na dramaturgia e na encenação do Vazante.

A luz de Vazante foi elogiada durante o Festival de Berlim, e a revista Variety disse que o filme tem "imagens belíssimas". Como foi construída a fotografia do filme?

Encontrei um parceiro incrível no Inti Briones, fotógrafo peruano, que encarou desafio após desafio para fazer Vazante. Desde o começo eu sabia que queria filmar em preto e branco e também que não queria ver o reflexo dos filamentos de lâmpadas elétricas nas testas dos atores. Minha proposta era recriar a vida tal como era na época que a história se passa... e filmá-la... sem usar os recursos que pudessem alterar a experiência. Ele topou. Usamos exclusivamente luz de vela e fogo. Usamos também o mínimo de lentes que comprimem ou distorcem a imagem e abandonamos completamente o uso de movimentos de câmera quando não para acompanhar a ação dos personagens. Filmamos com austeridade e com uma idéia de tudo mostrar, do foco longo igual ao do nosso olhar. A paisagem extraordinária, somada à maestria do Inti, produziu imagens exuberantes e de uma materialidade pulsante, eu acho.

Existe uma polêmica em torno da representação da escravidão no filme, e o barulho gerado desde sua primeira exibição no país, durante o Festival de Brasília, em setembro, parece realçar a natureza denuncista de Vazante. Que denúncia é essa?

Acredito que a falha trágica brasileira é a escravidão. Foram quase 400 anos dessa aberração humana, desse genocídio, que é a base da nossa história, que nos constitui fundamentalmente. E também nos constitui o poder quase sempre incontestável do homem branco sobre seus escravos, sobre suas mulheres, quando não as escravas – de quem se serviam a seu bel prazer – às esposas meninas, dadas a homens muito mais velhos em casamento. Houve uma falência geral desse estranho pacto social que se fez aqui no Brasil Colonial. É dessa pequena lista de temas que Vazante quis tratar: uma fração da complexidade que ainda resiste à compreensão e que ainda hoje atinge frontalmente a muitos brasileiros. Temas explosivos, carne viva. Tenho orgulho de estar servindo de instrumento para a discussão de temas que me mobilizam tanto e que considero imprescindíveis para o avanço da democracia no meu país.

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