Colunistas

Artigo

Affonso Solano | John-117

Se não acabarmos com as guerras, as guerras acabarão conosco. - H. G. Wells

08.04.2015, às 15H41.
Atualizada em 19.11.2016, ÀS 20H02

O estrondo ecoou pelo quarteirão empoeirado, balançando a aglomeração de carros ao longo da rua. Não houve gritos – os veículos haviam sido abandonados horas antes, quando a invasão à ensolarada Nova Mombasa tivera início. Caças riscavam o ar, esquivando da azulada munição extraterrestre que corrompia os céus africanos.

None

De tocaia na janela do segundo andar do prédio de apartamentos, a fuzileira sentiu a sala em que se encontrava tremer sob a onda de choque. Fragmentos de tinta e reboco se desprenderam do teto e lhe acertaram o topo do capacete, sugerindo a fragilidade do esconderijo.

Leia todas as colunas de Affonso Solano

- Acha que foi um dos nossos? – perguntou o soldado que dividia o aposento com ela. Visivelmente cansado, o rapaz mantinha vigília na porta de entrada do apartamento, salpicada de furos de bala.

- Como diabos vou saber, Romariz? – a mulher retrucou.

- Use sua arma, ora.

- Ela não vem com raios-X, sabia? – ela ironizou, ajustando a mira do rifle de alta precisão. Suando sob o uniforme surrado, a jovem de cabelos curtos e loiros disfarçava o medo melhor que o colega.

- Talvez seja hora de cairmos fora deste lugar – o soldado opinou, espiando pela fresta da porta. Graças aos bombardeios, o pátio interno do prédio havia se transformado em um amontoado de concreto e aço retorcido.

- Eu já disse – a fuzileira rebateu, enfática. – ; é melhor esperarmos até a noite, ou vamos ser vistos rapidinho pelos snip--

- Ah, quem se importa, não vai fazer diferença! – Romariz a interrompeu. – Está vendo essas manchas nas minhas ombreiras? São o que sobrou do Sargento Borgo, droga! Ele, Forlani e o resto do maldito pelotão se foram e nós só estamos adiando o inevitável...

- Ainda temos uma chance aqui – ela o repreendeu, ajeitando os óculos no rosto magro. – Mesmo sem o rádio, sabemos o ponto de encontro, podemos--

- “Chance”? – o soldado debochou, brandindo a pistola. – Eles vão vitrificar o planeta inteiro como fizeram com Reach! Estamos ferrados, Moreira! O jogo acabou, entende? ACABOU!

Um latido ecoou na rua.

Leia todas as colunas de Affonso Solano

- Que diabos foi isso? – Romariz perguntou, sussurrando. A atiradora voltou a atenção para a janela.

- A não ser que uma nova espécie tenha se juntado aos Covenant, acredito que seja um cachorro – ela confirmou, encontrando o animal com a mira do rifle. Encolhido sob a carcaça de uma van em frente a um conversível, a criatura emitia um ganido alto e sofrido.

- Por que diabos ele está latindo assim? – o soldado inquiriu.

- Não me parece machucado... – ela avaliou. – Está sozinho, deve estar apavorado.

- Consegue acertá-lo daqui?

Fechando o semblante, a fuzileira encarou o companheiro.

- Não me alistei na UNSC para assassinar cachorros – ela protestou, encarando-o através dos óculos.

- Ele vai atrair alguém para cá – o homem previu.

- Então... vá busca-lo.

Romariz torceu o rosto.

- Está louca? – falou. – Eu não vou descer lá.

- Posso lhe dar cobertura – ela insistiu. – Ele só está assustado, quando vir você chegando vai se acalmar.

Cauteloso, o rapaz se aproximou da janela.

- Pode ser uma armadilha – declarou, estudando a rua.

- “Armadilha”? – a fuzileira retrucou. – Com um cachorro? Acha que os Covenant assistiram “Os invasores de corpos” e ficaram criativos?

Em silêncio, a dupla se encarou por alguns instantes. Ao longe, o cão persistiu com o lamento.

- Mas que merda – Romariz xingou, contraindo os lábios. – Ele não vai parar, vai?

- Estarei cobrindo você – a mulher repetiu.

Leia todas as colunas de Affonso Solano

O soldado cerrou os olhos contra a luz do sol. O ar estava seco, empoeirado e com o cheiro de morte que ele já havia se acostumado a identificar. De pistola em punho, o rapaz olhou para o prédio de onde acabara de descer – da janela do segundo andar, Moreira apontava na direção do cachorro.

- Sou o maldito Dr. Dolittle agora – Romariz resmungou, caminhando entre o corredor de veículos. Logo os latidos aumentaram de volume e ele alcançou a van onde o animal se escondia.

- Ei, garotão, o que acha de ficar quietinho, heim? – falou para o animal, se curvando para visualizá-lo. O cachorro, contudo, latiu ainda mais alto ao se deparar com o humano, rosnando e recuando sob a carcaça de metal.

“Merda”, pensou Moreira.

Da janela do prédio, a fuzileira assistiu aterrorizada um pequeno comboio Covenant surgir na esquina; um trio de Elites – munidos de rifles e espadas de plasma – acompanhava dois pesados Caçadores, cuja força bruta abria caminho às pressas entre carros e destroços urbanos. Sentindo o coração martelar, a jovem jogou a mira para o parceiro, que se agachara ao notar a chegada do grupo inimigo; exausto e com apenas meio pente na pistola, ele não duraria muito quando descoberto.

E o cachorro não parava de latir.

A mulher retornou a atenção aos alienígenas e engatilhou a arma de longo alcance. O calor lhe embaçava os óculos. “Por que não fiz a maldita cirurgia?”, ela pensou, posicionando a retícula sobre a cabeça de um dos Elite.

E então entendeu.

Os Caçadores dispararam os canhões na direção da viela de onde haviam chegado. Agitados, os Elites encontraram proteção atrás dos escombros e gritaram ordens de comando.

Não haviam chegado ali por causa do cão. Estavam fugindo. Fugindo de algo assustador.

O jipe militar surgiu da viela, rugindo como um leão ensandecido e atropelando um dos Caçadores – o encontro entre metal e carne reduziu drasticamente a velocidade da viatura, mas o piloto não pareceu se importar, acelerando até rasgar o bloqueio e capotar no meio da rua principal. Uma cortina de fumaça e poeira se ergueu do acidente, impedindo Moreira de identificar o motorista.

A silhueta, contudo, sugeria que ele era enorme.

Leia todas as colunas de Affonso Solano

Romariz esticou a cabeça acima do capô do conversível que o protegia; metros dali, os Elites e o Caçador restante ofereceram uma chuva de plasma contra o ventre do jipe virado, que agora servia de escudo para seu misterioso ex-piloto. Tiros de escopeta estouraram da fumaça, acertando um dos Elites e enfraquecendo seu escudo energético.

“Quem sobreviveria a algo assim?”, Romariz pensou, se esforçando para enxergar algo no caos. Outro som preencheu o ar, e ele reconheceu como um disparo da companheira – a bala zuniu entre os prédios e atingiu o alienígena vulnerável na lateral da cabeça, perfurando capacete e crânio. O jovem soldado decidiu contribuir e atacar os inimigos pelo flanco de onde se encontrava, atraindo parte da atenção para si. Apavorado, o cachorro se esgueirou pelo labirinto de carros e correu pela vida.

Da janela do edifício, Moreira engatilhou o segundo tiro, mas o que testemunhou a seguir a paralisou.

Com a poeira reduzida, a imagem do motorista do jipe se revelou com mais clareza: tratava-se de um homem ou ciborgue – ou assim a fuzileira o identificou dentro da robusta armadura esverdeada que lhe enclausurava o corpo. Guardando a espingarda no contato magnético das costas, o supersoldado produziu uma granada do cinto, removeu-lhe o pino e a atirou dentro da cabine do veículo militar tombado. Em seguida deu um passo para trás e chutou com força descomunal o jipe, que deslizou na direção dos alienígenas como uma bomba programada; a explosão abraçou os oponentes em cheio, encerrando o conflito tão rápido quando o começara.

Romariz permaneceu escondido. Com o pente vazio, ele se agachara atrás do conversível para se proteger do contra-ataque, logo antes da explosão.

“Levante-se, soldado”, o rapaz escutou.

Temeroso, ele espiou sobre o capô do veículo de passeio. O supersoldado o encarava do meio da rua, refletindo o sol no visor alaranjado. Sua armadura era um registro móvel dos conflitos que vivenciara, decorada com arranhões e amassados que contavam história.

- Levante-se, soldado – o espartano repetiu, recarregando a escopeta. – O jogo ainda não acabou.

Leia todas as colunas de Affonso Solano


 

Affonso Solano é cocriador do Matando Robôs Gigantes, escritor do livro O Espadachim de Carvão e tem um canal no YouTube chamado Hora Super

 

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a nossa Política de Privacidade bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.