O estrondo ecoou pelo quarteirão empoeirado, balançando a aglomeração de carros ao longo da rua. Não houve gritos – os veículos haviam sido abandonados horas antes, quando a invasão à ensolarada Nova Mombasa tivera início. Caças riscavam o ar, esquivando da azulada munição extraterrestre que corrompia os céus africanos.
De tocaia na janela do segundo andar do prédio de apartamentos, a fuzileira sentiu a sala em que se encontrava tremer sob a onda de choque. Fragmentos de tinta e reboco se desprenderam do teto e lhe acertaram o topo do capacete, sugerindo a fragilidade do esconderijo.
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- Acha que foi um dos nossos? – perguntou o soldado que dividia o aposento com ela. Visivelmente cansado, o rapaz mantinha vigília na porta de entrada do apartamento, salpicada de furos de bala.
- Como diabos vou saber, Romariz? – a mulher retrucou.
- Use sua arma, ora.
- Ela não vem com raios-X, sabia? – ela ironizou, ajustando a mira do rifle de alta precisão. Suando sob o uniforme surrado, a jovem de cabelos curtos e loiros disfarçava o medo melhor que o colega.
- Talvez seja hora de cairmos fora deste lugar – o soldado opinou, espiando pela fresta da porta. Graças aos bombardeios, o pátio interno do prédio havia se transformado em um amontoado de concreto e aço retorcido.
- Eu já disse – a fuzileira rebateu, enfática. – ; é melhor esperarmos até a noite, ou vamos ser vistos rapidinho pelos snip--
- Ah, quem se importa, não vai fazer diferença! – Romariz a interrompeu. – Está vendo essas manchas nas minhas ombreiras? São o que sobrou do Sargento Borgo, droga! Ele, Forlani e o resto do maldito pelotão se foram e nós só estamos adiando o inevitável...
- Ainda temos uma chance aqui – ela o repreendeu, ajeitando os óculos no rosto magro. – Mesmo sem o rádio, sabemos o ponto de encontro, podemos--
- “Chance”? – o soldado debochou, brandindo a pistola. – Eles vão vitrificar o planeta inteiro como fizeram com Reach! Estamos ferrados, Moreira! O jogo acabou, entende? ACABOU!
Um latido ecoou na rua.
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- Que diabos foi isso? – Romariz perguntou, sussurrando. A atiradora voltou a atenção para a janela.
- A não ser que uma nova espécie tenha se juntado aos Covenant, acredito que seja um cachorro – ela confirmou, encontrando o animal com a mira do rifle. Encolhido sob a carcaça de uma van em frente a um conversível, a criatura emitia um ganido alto e sofrido.
- Por que diabos ele está latindo assim? – o soldado inquiriu.
- Não me parece machucado... – ela avaliou. – Está sozinho, deve estar apavorado.
- Consegue acertá-lo daqui?
Fechando o semblante, a fuzileira encarou o companheiro.
- Não me alistei na UNSC para assassinar cachorros – ela protestou, encarando-o através dos óculos.
- Ele vai atrair alguém para cá – o homem previu.
- Então... vá busca-lo.
Romariz torceu o rosto.
- Está louca? – falou. – Eu não vou descer lá.
- Posso lhe dar cobertura – ela insistiu. – Ele só está assustado, quando vir você chegando vai se acalmar.
Cauteloso, o rapaz se aproximou da janela.
- Pode ser uma armadilha – declarou, estudando a rua.
- “Armadilha”? – a fuzileira retrucou. – Com um cachorro? Acha que os Covenant assistiram “Os invasores de corpos” e ficaram criativos?
Em silêncio, a dupla se encarou por alguns instantes. Ao longe, o cão persistiu com o lamento.
- Mas que merda – Romariz xingou, contraindo os lábios. – Ele não vai parar, vai?
- Estarei cobrindo você – a mulher repetiu.
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O soldado cerrou os olhos contra a luz do sol. O ar estava seco, empoeirado e com o cheiro de morte que ele já havia se acostumado a identificar. De pistola em punho, o rapaz olhou para o prédio de onde acabara de descer – da janela do segundo andar, Moreira apontava na direção do cachorro.
- Sou o maldito Dr. Dolittle agora – Romariz resmungou, caminhando entre o corredor de veículos. Logo os latidos aumentaram de volume e ele alcançou a van onde o animal se escondia.
- Ei, garotão, o que acha de ficar quietinho, heim? – falou para o animal, se curvando para visualizá-lo. O cachorro, contudo, latiu ainda mais alto ao se deparar com o humano, rosnando e recuando sob a carcaça de metal.
“Merda”, pensou Moreira.
Da janela do prédio, a fuzileira assistiu aterrorizada um pequeno comboio Covenant surgir na esquina; um trio de Elites – munidos de rifles e espadas de plasma – acompanhava dois pesados Caçadores, cuja força bruta abria caminho às pressas entre carros e destroços urbanos. Sentindo o coração martelar, a jovem jogou a mira para o parceiro, que se agachara ao notar a chegada do grupo inimigo; exausto e com apenas meio pente na pistola, ele não duraria muito quando descoberto.
E o cachorro não parava de latir.
A mulher retornou a atenção aos alienígenas e engatilhou a arma de longo alcance. O calor lhe embaçava os óculos. “Por que não fiz a maldita cirurgia?”, ela pensou, posicionando a retícula sobre a cabeça de um dos Elite.
E então entendeu.
Os Caçadores dispararam os canhões na direção da viela de onde haviam chegado. Agitados, os Elites encontraram proteção atrás dos escombros e gritaram ordens de comando.
Não haviam chegado ali por causa do cão. Estavam fugindo. Fugindo de algo assustador.
O jipe militar surgiu da viela, rugindo como um leão ensandecido e atropelando um dos Caçadores – o encontro entre metal e carne reduziu drasticamente a velocidade da viatura, mas o piloto não pareceu se importar, acelerando até rasgar o bloqueio e capotar no meio da rua principal. Uma cortina de fumaça e poeira se ergueu do acidente, impedindo Moreira de identificar o motorista.
A silhueta, contudo, sugeria que ele era enorme.
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Romariz esticou a cabeça acima do capô do conversível que o protegia; metros dali, os Elites e o Caçador restante ofereceram uma chuva de plasma contra o ventre do jipe virado, que agora servia de escudo para seu misterioso ex-piloto. Tiros de escopeta estouraram da fumaça, acertando um dos Elites e enfraquecendo seu escudo energético.
“Quem sobreviveria a algo assim?”, Romariz pensou, se esforçando para enxergar algo no caos. Outro som preencheu o ar, e ele reconheceu como um disparo da companheira – a bala zuniu entre os prédios e atingiu o alienígena vulnerável na lateral da cabeça, perfurando capacete e crânio. O jovem soldado decidiu contribuir e atacar os inimigos pelo flanco de onde se encontrava, atraindo parte da atenção para si. Apavorado, o cachorro se esgueirou pelo labirinto de carros e correu pela vida.
Da janela do edifício, Moreira engatilhou o segundo tiro, mas o que testemunhou a seguir a paralisou.
Com a poeira reduzida, a imagem do motorista do jipe se revelou com mais clareza: tratava-se de um homem ou ciborgue – ou assim a fuzileira o identificou dentro da robusta armadura esverdeada que lhe enclausurava o corpo. Guardando a espingarda no contato magnético das costas, o supersoldado produziu uma granada do cinto, removeu-lhe o pino e a atirou dentro da cabine do veículo militar tombado. Em seguida deu um passo para trás e chutou com força descomunal o jipe, que deslizou na direção dos alienígenas como uma bomba programada; a explosão abraçou os oponentes em cheio, encerrando o conflito tão rápido quando o começara.
Romariz permaneceu escondido. Com o pente vazio, ele se agachara atrás do conversível para se proteger do contra-ataque, logo antes da explosão.
“Levante-se, soldado”, o rapaz escutou.
Temeroso, ele espiou sobre o capô do veículo de passeio. O supersoldado o encarava do meio da rua, refletindo o sol no visor alaranjado. Sua armadura era um registro móvel dos conflitos que vivenciara, decorada com arranhões e amassados que contavam história.
- Levante-se, soldado – o espartano repetiu, recarregando a escopeta. – O jogo ainda não acabou.
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Affonso Solano é cocriador do Matando Robôs Gigantes, escritor do livro O Espadachim de Carvão e tem um canal no YouTube chamado Hora Super.