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Até onde o horror deve ir? | Affonso Solano

A experiência da guerra e do trauma nos games pode se tornar real demais?

29.11.2015, às 11H00.
Atualizada em 08.11.2016, ÀS 16H03

"Filmes e games ainda não chegam perto do verdadeiro horror da guerra." - Bill Betts, operador de rádio em tanques Sherman, 1945.

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"CÓDIGO ACEITO", exibiu o pequeno display do sintonizador portátil de Amanda. A porta deslizou para cima e a engenheira soltou um palavrão de alívio, ainda que as sirenes ao redor dificultassem o escutar da própria voz.

A mulher adentrou a sala de controle, amarelada pela luz que rodopiava em uma das paredes. Não havia ninguém - vivo ou morto - e ela agradeceu por isso. Aberto, o duto de ventilação do teto deixava um vapor fedorento enevoar o cenário, irritando seus olhos. Copos de café descansavam sobre as mesas, esquecidos no caos que havia contaminado a estação. Como folhas de um outono produtivo, fichas e relatórios outrora importantes estampavam o chão. "Por favor, faça isso dar certo", Amanda pensou, se aproximando do computador central. Graças ao confinamento de segurança, o sistema bloqueara todas as saídas do setor e a impedira de retornar à estação médica; ela torcia para que o terminal à sua frente fosse capaz de reverter a situação.

Ansiosa, a engenheira assoprou as cinzas do teclado e entrou com o comando. O sistema apitou e escorregou letras e números pela tela verde. O logo da Seegson Corporation a encarou, debochando de sua paciência.

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Algo se moveu no duto de ventilação.

A coisa deslizou para fora do teto. Envolta pelo vapor que vazava da abertura, sua forma era confusa, embora Amanda - antes de se agachar atrás da mesa de controle - tenha sido capaz de registrar que era negra e vagamente humanoide.

E se movia com uma graça inacreditável.

"Oh, Deus, por favor, faça com que não tenha me visto, por favor", a mulher implorou, prendendo a respiração. Acima de sua cabeça, o terminal sobre a mesa encerrou o protocolo, desaparecendo com as sirenes e as luzes de emergência. A coisa (o que quer que fosse) pousou no chão da sala de controle e sibilou. A mente de Amanda buscou na natureza alguma referência para o som. Não houve resposta. Ao invés disso, ela se lembrou de um antigo livro de fantasia que a mãe lhe dera de aniversário. "Monstros são medos ainda sem nome", dizia um dos personagens.

Não havia nome para aquilo.

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O trecho acima representa um dos diversos momentos angustiantes que vivi no jogo Alien: Isolation. Ambientado 15 anos após os eventos do filme de Ridley Scott, aqui acompanhamos Amanda Ripley, filha de Ellen Ripley, em busca do paradeiro da mãe - um argumento simples, porém sólido o bastante para que o jogador se encontre em um dos cenários mais clássicos da ficção de horror, lutando pela vida como poucos simuladores são capazes de fazer.

Escrevo "simuladores" uma vez que considero Isolation muito mais próximo desta experiência do que um "jogo" propriamente dito. A base de sua receita - a vulnerabilidade quase total da protagonista - não é nova (Outlast ou Amnesia, por exemplo, se utilizam dos mesmos princípios), porém ao recriar com perfeição o cenário e a atmosfera do filme original, os produtores acrescentam um ingrediente desigual frente à concorrência: a familiaridade. O cenário de Alien está enraizado de tal forma no fã da franquia que, ao jogarmos Isolation, aplicamos nossos traumas pessoais à experiência, multiplicando seu potencial.

Entendo que a impressão possa não ser a mesma para todos, é claro. Há quem jogue com as luzes acesas (uma blasfêmia ao gênero, na opinião deste colunista), sequer tenha assistido ao filme original ou até mesmo não tenha o alcance emocional de se conectar com a fantasia desta forma. Para o super-fã, no entanto, Alien: Isolation é o reviver de um pesadelo familiar – porém agora na pele de quem o está sonhando. Ao final, a sensação que tive foi a de ter passado por uma jornada fascinante, ainda que extremamente desagradável; o que me deixou verdadeiramente confuso.

Considerando o ritmo evolutivo da tecnologia da simulação digital, me encontrei refletindo sobre até onde o entretenimento deva ir antes de se transformar em uma experiência real demais para o usuário. Em 2012 tive a oportunidade de testar simuladores da NASA, no Centro Espacial John F. Kennedy, capazes de fazer corpo e mente temerem a sensação de sair da órbita da Terra por alguns minutos (apesar de estar ciente de que eu estava no interior de uma caixa acústica movida por pistões). E não estamos longe de uma versão disso na sala de estar. A questão é no que vamos embarcar quando dermos o play.

Gostamos da adrenalina das montanhas-russas e nos divertimos alertando a cheerleader sobre o assassino em seu encalço, mas queremos que o trilho tenha fim e não trocaríamos de lugar com a vítima. Basta perguntar a qualquer veterano de guerra o que ele acharia de se plugar em Call of Duty 16: Neural Experience e reviver suas memórias:

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"Vi pessoas sendo explodidas e queimadas vivas. Aquilo vai ficar comigo para sempre. Filmes e games não reproduzem aquele cheiro horrível e nauseante de carne queimada." – Bill Betts, operador de rádio em tanques Sherman na 2ª Guerra Mundial.

Em breve poderão, Bill. Em breve poderão.

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